Fazia tempo que eu não dormia tão gostosamente.
Senti o sol entrando pela janela, atravessando a cortina e me convidando a levantar.
Mas deu uma preguiça!
Virei de lado na cama. Não queria pensar em nada. Só ficar ali, deitada, quieta, escutando o som do meu respirar.
Mas alguém entrou no quarto.
Foi pé ante pé, eu escutei. Sentou-se na cama, perto dos meus pés.
"Rachi?"
Era mamãe.
"Está dormindo?"
Porque será que sempre perguntam se estamos dormindo quando estamos acordados? Acho que esse deve ser um mistério da humanidade...
"Ah,é? Levante, sua preguiçosa!"
Senti cócegas. Muitas. Eu não aguentava que fizessem isso nos meus pés, eu literalmente perdia o chão, o ar, tudo.
Eu comecei a rir. Tive que levantar.
- Droga, sua odalisca biruta! Deixa eu dormir!
- Não. Está na hora de acordar. E além do que Rachi, você está mau-acostumada!
- Eu??
- Sim.
- Aff...Porquê?
- Você esqueceu do seu jardim lá nos fundos, sabia?
Arregalei os olhos. Era verdade, eu tinha esquecido mesmo.
Saltei da cama, desci o lance de escadas apressada; meu bom Odin, eu esqueci do meu jardim!
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Quando eu morava com Hanna em Kunlun, eu tinha um jardim na frente da casa.
De forma semi-consciente, trouxe uma flor de cada tipo, simbolizando os amigos que tinha feito até aquele momento. Todos os dias eu regava o jardim, falava com as flores quando ficava sozinha e cuidava para que as mesmas não morressem.
O clima ameno de Kunlun, por ficar perto do céu me ajudava muito, e mesmo quando eu me ausentava de casa por muito tempo, tinha sorte de nunca achar nenhum flor do meu jardim precisando de água ou de terra.
Isso não acontecia agora em Morroc.
O solo, demasiado arenoso, não tinha terra fértil para manter as flores. Eu era obrigada a ir até perto de Payon ou Prontera para buscar terra para as flores, além de ter que regá-las muito mais vezes.
Além disso, o vento do deserto era muito hostil para com as plantas. Eu tive que deixá-las abrigadas num cômodo da casa para que o vento e a areia do deserto não as machucasse.
Quando entrei no cômodo, puxei a cortina para que o sol entrasse completamente e corri para procurar o regador.
Mas as flores estavam perfeitas, tão bem quanto se eu tivesse cuidado delas pelas últimas semanas.
Demorei a entender. Mamãe parou na porta e olhou para mim.
- De nada, Rachiele. - ela sorriu. - Puxa, você se preocupa mesmo com as flores, não é?
- Sim mãe...
Ri do meu sobresalto. Minha mãe riu também. Entramos e fomos tomar café.
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- Rachiele, o que você pretende fazer da sua vida, filha? - mamãe estava tirando a mesa. Eu fiquei sentada com as mãos atrás da cabeça e com a folha na boca.
- Não sei, mãe. Me peguei pensando isso alguns dias atrás...
- Humm...
- Isso de ser aventureira...Tem gente que já morreu por aí...casou, teve filhos...E eu aqui...
- Isso te preocupa, filha?
Silenciei.
- Eu...eu acho que sim.
- Eu pensei que você gostava dessa vida. Viajar é bom, você caça os monstros, está sempre conhecendo gente...
- Mãe, eu vou ser sincera, eu tenho medo de morrer.
Mamãe me olhou, parando de separar a louça. Enxugou as mãos num pano, deixou o mesmo em cima da mesa e foi em minha direção.
Eu estava sentada, olhando o chão quando ela me abraçou.
Chorei.
- O que você tinha que me provar, já provou Rachiele...não chore...
- Desculpa, vou ser sincera, aqui eu posso...Eu sou um fardo pros outros. Eu não faço diferença.
- Rachi...
- O Kerd está coberto de razão! Não basta eu ter um coração bom, tem uma hora que isso não basta...E eu perto dos outros sou uma fraca!
Ela nada disse, ficou acarinhando minha cabeça.
- A Hanna morreu na minha frente, Tales foi embora sei lá pra onde porque eu não pude proteger ele, e a Haranny? Coitada, ela me aceitou como pupila antes de sumir, eu acho que ela ficaria chateada comigo...
- Rachiele, calada!
Me limitei a ficar chorando baixinho.
- Filha...Você é uma pessoa maravilhosa...as pessoas sentem isso em você. Por isso elas confiam em você. Você me falou ontem na janta da Isobela, acha que ela ficaria contigo se não confiasse em você?
Eu nada disse. O choro impedia minha voz de sair por completo.
- Isso da Hanna...você disse que viviam juntas felizes...acho que isso valeu pra ela. Você falou que ela era uma mulher sofrida demais, eu acredito que você deu alguma paz para ela. E como você mesma diz, se a Valquiria achar que ela merece, ela vai voltar. Você falou pra nós da promessa que vocês fizeram em Juno, não é? Será que esqueceu disso? Rachiele, olhe pra mim!
Olhei. Eu não tinha esquecido da promessa que fiz.
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"Hanna, porque você não refaz sua vida? Tente pelo menos..."
"Eu não quero Rach..."
"Diabos, você não pode ser tão burra assim! Pense no Hector! Ele ficaria feliz se visse que você descobriu quem matou ele, porquê mataram e que tu refez tua vida! Eu ficaria feliz com isso, imensamente feliz!"
"..."
"Sei lá, casa de novo, tenha filhos, cuide deles, quando tu for pro Valhalla encontrar o Hector, vai poder dizer pra ele: "Amor, eu consegui refazer tudo, podemos ficar juntos agora!" Você não pensa nisso?"
"...Ah,Rach..."
"Vamos tentar! Não temos nada a perder!"
"..."
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Hanna gostava de minha sinceridade. Eu entendi seu silêncio com um "sim" cheio de medo. Daquele dia em diante, nunca mais falei de Hector perto dela. Éramos adultas, sabíamos o que teríamos que fazer.
E por isso, nunca fizemos nada.
- O que você quer da sua vida, Rachiele?
- E-eu não sei, mãe...
- Então filha... - ela passou a mão em meu rosto - Pense nisso. O que é mais importante para você?
- ...Ajudar os outros sem esperar nada em troca.
- Isso é bom. - ela sorriu. - E você quer o quê para você, Rachi?
- Aah... - me perdi em pensamentos por longos instantes enquanto minha mãe acariciava meu rosto. - Ter amigos...
- Uhum...isso você tem, não?
- Tenho...tenho sim...
- O que mais você quer? Dinheiro? Poder? Ser dona de algum castelo?
- Não, não, isso não.
- Filha...
- Huh?
- Você tem feito muitas coisas para os outros...Feito e faz ainda...Sua recompensa virá, sabe disso?
- Ah, nem precisa isso...
- Virá. Você querendo ou não. Se é que já não veio. - ela sorriu. - Vamos, me ajude a arrumar a cozinha.
- Cadê o papai?
- Foi para Prontera cedo, antes do sol nascer. Foi comprar algumas coisas no mercado e olhar os murais.
- Ah, tá.
Me levantei e fui ajudar mamãe. Fiquei pensando sobre o que eu realmente queria para mim.
Era uma reflexão necessária.